Dom Quixote, de Miguel de Cervantes – Traduções comparadas, 1ª parte

“Ditosa idade e século ditoso aquele a cuja luz saírem as famosas façanhas minhas, dignas de se gravarem em bronzes, esculpirem em mármores e pintarem em tábuas, para a memória do futuro.”

“Dom Quixote”, grande clássico do autor espanhol Miguel de Cervantes, foi lançado em 1605 (primeiro livro) e 1615 (segundo livro), e teve sete traduções publicadas no Brasil:

  • António Feliciano de Castilho (Visconde de Castilho), Francisco Lopes de Azevedo Velho de Fonseca Barbosa Pinheiro Pereira e Sá Coelho (Visconde de Azevedo) e Manuel Pinheiro Chagas (cujo nome não aparece nos créditos): tradução portuguesa lançada em 1876/78 (primeiro/segundo livro) e publicada no Brasil pela primeira vez em 1942/43. É a tradução com maior número de edições no país. Editada atualmente pela Martin Claret, em versões brochura e capa dura.
  • Almir de Andrade e Milton Amado: primeira tradução brasileira, lançada em 1952. Editada atualmente pela Nova Fronteira.
  • Aquilino Ribeiro: tradução portuguesa publicada em 1963 no Brasil.
  • Eugênio Amado: brasileira, de 1983. Essa tradução foi revisada em 2005.
  • Sergio Molina: brasileira, 2002/2007. Editada pela Editora 34, nas versões de bolso e bilíngüe com ilustrações.
  • Carlos Nougué e José Luis Sánchez: brasileira, 2005 (primeiro livro).
  • Ernani Ssó: brasileira, 2013. Editada pela Penguin.

Nesta comparação, ficarão de fora as traduções de Aquilino Ribeiro, Eugênio Amado e Carlos Nougué/José Luis Sánchez, devido à escassez desses volumes no mercado e em bibliotecas. Como o objetivo aqui é auxiliar quem deseja ler o livro e procura a melhor tradução disponível, não vejo necessidade de incluir versões que ninguém vai conseguir encontrar.


Primeiro livro, capítulo I

CapI_Original_01

CapI_Original_02
Original
CapI_ViscondesCastilho
Tradução Castilho, Azevedo e Chagas
CapI_AndradeAmado
Tradução Andrade e Amado

CapI_Molina_01

CapI_Molina_02

CapI_Molina_03
Tradução Molina
CapI_Sso
Tradução Ssó
  • Em primeiro lugar, é preciso salientar um fato: “Dom Quixote” tem mais de 400 anos e já foi editado inúmeras vezes. Portanto, divergências encontram-se já entre as edições do texto espanhol e chegam, é claro, às traduções, dependendo da versão em que estas se baseiam. Uma dessas divergências, que salta logo aos olhos, está no número de parágrafos: a tradução de Castilho, Azevedo e Chagas divide em cinco o trecho que nas outras traduções ocupa apenas um parágrafo, e no livro espanhol que estou utilizando, o primeiro parágrafo continua, não termina no mesmo ponto. A explicação está no curioso fato de que na época de Cervantes não se costumava dividir o texto em parágrafos, e por um bom tempo isso foi comum (a primeira edição de “Dom Quixote” em que se aplicou uma divisão sistemática de parágrafos foi publicada apenas em 1863, dois séculos e meio depois de sua criação). Como as quebras do texto ficam a critério dos editores — e apesar de atualmente existir um texto-base utilizado pela maioria deles — acredito que seja essa a causa das diferenças que encontramos aqui.
  • No cotejo desse trecho, a diferença na tradução de Ernani Ssó para o título do capítulo é a primeira coisa que chama a atenção: “Que trata da condição do famoso e valente fidalgo Dom Quixote de la Mancha e de como a exercita“. O original traz: “Que trata de la condicion y ejercicio del famoso hidalgo Don Quijote de la Mancha”. O termo valente se explica pelo que mencionei acima: na versão do original que estou usando essa palavra não aparece, mas está lá, na edição dirigida por Francisco Rico, que está disponível no site do Instituto Cervantes (onde inclusive há uma nota que explica essa diferença). Ejercicio, vertido pelos outros tradutores para exercício, significa, no meu entender, o que o referido fidalgo exerce, o que ele faz da vida. Podemos então dizer que o capítulo tratará de duas coisas: da condição (que se refere “tanto à posição social como ao temperamento do personagem”, segundo Molina) e do exercício (o que o personagem faz). Mas o título de Ssó — em consonância com uma nota explicativa da edição de Francisco Rico — afirma que o capítulo tratará da condição de Dom Quixote e de como ele a exercita, ou seja, como o personagem exerce seu temperamento e sua posição social, o que para mim não faz muito sentido.
  • Alguém poderia me fazer o favor de decifrar esta frase da tradução de Castilho, Azevedo e Chagas? — “Passadio, olha seu tanto mais de vaca do que de carneiro…” É sério, se alguém entendeu me explica, por favor.
  • Compare as traduções destes dois termos:

QuadroComparativo_LivICapI

Através dessa comparação podemos ter uma idéia da opção preferencial de cada tradutor entre levar o texto até o leitor ou, ao contrário, trazer o leitor até o texto. Enquanto Andrade/Amado e Ssó utilizam termos genéricos de significado próximo ao do original (panelada, cozido), ou substituem uma expressão pela sua explicação (ovos fritos com torresmo[s]), Molina emprega um cognato (olha) ou mantém o termo original (duelos y quebrantos), lançando mão de notas de rodapé que os esclarecem. Quanto a Castilho, Azevedo e Chagas, não sei o que dizer; estou esperando que uma boa alma me explique a frase em que estão passadio e olha. Em outros sobejos ainda somenos, a opção foi a primeira: levar o texto até o leitor, substituindo o termo por uma explicação (que a meu ver está incorreta). É interessante notar, porém, que mesmo sendo uma tradução explicativa, somos obrigados (eu fui) a consultar um dicionário para compreendê-la. Creio que a razão disso seja a distância de 140 anos que nos separa do lançamento desta tradução.

  • Como nas comparações anteriores, sugiro que você leia as traduções para perceber qual lhe soa mais agradável. Vai ficar mais fácil quando eu trouxer mais trechos (o que espero poder fazer em breve).

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Segunda parte desta comparação aqui: Dom Quixote, de Miguel de Cervantes – Traduções comparadas, 2ª parte

23 comentários em “Dom Quixote, de Miguel de Cervantes – Traduções comparadas, 1ª parte

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  1. Olá, bom dia,

    A tradução feita por Carlos Nougué e José Luis Sánchez saiu também pela editora Abril em 2010 pela coleção “Clássicos Abril Coleções” em dois volumes e por um preço bem acessível. É uma edição repleta de notas de rodapé que justificam as escolhas feitas pelos autores ao traduzir a obra; elas me ajudaram e MUITO num melhor compreensão do livro. Vale a pena conferir.

    Abraços

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    1. Boa noite, sou assinante de um clube de literatura clássica e eles tem uma edição de Dom Quixote traduzida pelo Aquilino Ribeiro. Mas estou em dúvida se leio tal tradução ou a do Sérgio Molina?? Será meu primeiro contato com a obra.

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      1. Oi, Klynton. A primeira coisa que eu posso te dizer é que não tenha medo. Lê uns trechos da tradução do Molina, lê os mesmos trechos do Aquilino Ribeiro, e vai vendo o que te agrada mais. Tendo dito isso, me parece que a do Aquilino é um pouco mais difícil por conta do vocabulário, mas essa edição do Clube de Literatura Clássica compensa isso com a enorme quantidade de notas de rodapé. No fim das contas, é você que tem de decidir. Infelizmente, quando fiz a comparação, deixei de fora essa tradução do Aquilino Ribeiro, porque não era muito fácil de se encontrar.

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  2. Olá. As comparações são bem intetessantes e pedagógicas (claras)…rsrs. Ainda estou na dúvida de qual edição escolher, mas seu texto já me ajudou muito.

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      1. “Levar o texto até o leitor” é traduzir de modo mais explicativo, ou utilizando palavras mais fáceis, de modo a que o texto fique mais próximo da realidade do leitor. A tradução “traz o leitor até o texto” quando não explica muito, quando não traduz alguns termos locais específicos, ainda que possa se utilizar de notas de rodapé para esclarecê-los, obrigando o leitor a fazer um esforço maior de entendimento, aproximando-o da cultura do texto original, de certa forma.

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  3. Caro Luiz, na minha edição da abril de 78 (a tradução dos viscondes) o trecho do “passadio…” tem uma nota de rodapé que diz: “A carne de carneiro era mais apreciada que a de vaca. Em toda esta passagem pinta Cervantes a vida pacífica e medíocre do fidalgo.” No dicionário Houaiss, passadio é “comida habitual”.

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      1. Olá, no meu entendimento “olha seu tanto mais de vaca do que de carneiro” seria “olha com seu bocado mais de vaca que de carneiro”. “Olha” (do espanhol “olla”, com pronúncia ôlha) é panela em espanhol, por isso ser traduzida como panelada/cozido.

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  4. Achei muito boa a tradução de Molina, porque a meu ver, traduziu melhor a frase “de cuyo nombre no quiero acordarme” por de “cujo nome ora me escapa”. Concordo com os que preferem esta interpretação, porque não faz sentido Cervantes não querer se lembrar por um ato intencional. Minha interpretação é que ele quer lembrar, tentou se lembrar, mas não conseguiu apesar do esforço. Reforça esta conclusão o fato de Cervantes ter usado a palavra “lugar” ao invés da palavra “pueblo”, que designa esta sim, aldeia.Ou seja, o local onde vivia Don Quixote, era um lugar de pouquíssima importância, remoto, que nem merecia o nome de “pueblo”, era simplesmente um conjunto de casas, um lugar.

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  5. Desculpe, mas poderia explicar a diferença entre “levar o texto até o leitor” e “trazer o leitor até o texto”?

    Atenciosamente,
    Paulo Serafim Sousa

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    1. “Levar o texto até o leitor” é traduzir de modo mais explicativo, ou utilizando palavras mais fáceis, de modo a que o texto fique mais próximo da realidade do leitor. A tradução “traz o leitor até o texto” quando não explica muito, quando não traduz alguns termos locais específicos, ainda que possa se utilizar de notas de rodapé para esclarecê-los, obrigando o leitor a fazer um esforço maior de entendimento, aproximando-o da cultura do texto original, de certa forma.

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