Dom Quixote, de Miguel de Cervantes – Traduções comparadas, 3ª parte

Nesta terceira e última parte da comparação entre as traduções de “Dom Quixote”, trago dois trechos do segundo livro e uma breve conclusão sobre elas. Se ainda não leu as duas primeiras partes, leia aqui:

Dom Quixote, de Miguel de Cervantes – Traduções comparadas, 1ª parte
Dom Quixote, de Miguel de Cervantes – Traduções comparadas, 2ª parte


Livro II, capítulo XXX

LivIICapXXX_Original
Texto original
LivIICapXXX_CastilhoAzevedoChagas
Tradução Castilho, Azevedo e Chagas
LivIICapXXX_AndradeAmado
Tradução Andrade e Amado
LivIICapXXX_Molina
Tradução Molina
LivIICapXXX_Ssó
Tradução Ssó
  • Todos os tradutores, com exceção de Molina, acabaram modificando um pouco o estilo do texto, ao repetir termos que tinham sido ocultados ou substituídos no original. São estes dois trechos:
    • “Este tal Caballero de los Leones, que no ha mucho que se llamaba el de la Triste Figura…”. Aqui, as três traduções mencionadas repetiram a palavra cavaleiro desnecessariamente, pois ela fica implícita por conta do que é dito antes.
    • “…sea servida de darle licencia para que, con su propósito y beneplácito y consentimiento, él venga a poner en obra su deseo, que no es otro, según él dice y yo pienso, que de servir a vuestra encumbrada altanería y fermosura; que en dársela vuestra señoría…”. Novamente, a repetição de licença é aqui desnecessária, a não ser como um auxílio para o leitor, que pode ter se perdido com a prolixidade de Sancho. Observe, porém, que essa suposta dificuldade é resultado do texto em si, e não da sua transposição para a nossa língua.
  • A tradução de Ernani Ssó traz ainda outro trecho em que algo semelhante acontece:
    • “…que não faz muito tempo se chamava Cavaleiro da Triste Figura…” (“…que no ha mucho que se llamaba el de la Triste Figura…”). Os outros tradutores utilizaram “não há/faz muito [que] se chamava…”, como no original, e a frase é perfeitamente compreensível, já que é uma expressão corrente; não há necessidade de indicar que se está falando de tempo.
  • Ernani Ssó parece ter se confundido com o final deste trecho. Quando Sancho diz “que en dársela vuestra señoría hará cosa que redunde en su pro y él recibirá señaladísima merced y contento”, está convencendo a caçadora a conceder a Dom Quixote a tal licença que tinha acabado de solicitar. Para isso, ele emprega dois argumentos: 1) dar essa licença é uma ação que resultará em benefícios à senhora e 2) Dom Quixote (él, ele) ficará muito contente por receber tão grande favor. Na primeira parte da argumentação de Sancho, Ssó entendeu que quem praticaria a ação mencionada (que traria benefícios à caçadora) seria Dom Quixote, e no intuito de deixar a frase mais clara adicionou ainda “ele cometerá façanhas”. No meu entender, quando Sancho diz em seguida “y él” (“e ele”), fica clara a mudança de sujeito: na primeira parte da argumentação o sujeito é “vossa senhoria” e na segunda parte é “ele” (Dom Quixote).
  • Tanto Castilho, Azevedo e Chagas, quanto Molina, mantiveram o ritmo do texto original ao não dividir o primeiro parágrafo em dois períodos, que é o que fizeram os outros tradutores.

Livro II, capítulo XXXIV

LivIICapXXXIV_Original
Texto Original
LivIICapXXXIV_CastilhoAzevedoChagas
Tradução Castilho, Azevedo e Chagas
LivIICapXXXIV_AndradeAmado
Tradução Andrade e Amado
LivIICapXXXIV_Molina
Tradução Molina
LivIICapXXXIV_Ssó
Tradução Ssó
  • “Del dicho al hecho hay gran trecho”: a dificuldade para traduzir esse ditado está na rima, que Castilho, Azevedo e Chagas (“do dizer ao fazer vai grande distância”), Andrade e Amado (“o dizer está muito longe do fazer”) e Ssó (“entre o digo e o faço há um bom pedaço”) reduziram a apenas dois termos; Molina conseguiu uma tradução muito próxima do original, mantendo a rima nos três termos (“do dito ao feito há grande eito”).
  • “Tripas llevan pies, que no pies a tripas”: Ernani Ssó não fez uma tradução literal como os outros tradutores, mas substituiu o ditado por outro mais conhecido e de significado semelhante, “saco vazio não para em pé”.
  • Os ditados, em geral, têm em si alguma musicalidade, algum ritmo, mesmo que não sejam rimados. Na comparação deste trecho, as diferenças de musicalidade talvez sejam a coisa mais interessante a se observar.

Conclusão

Podemos situar a tradução de Sérgio Molina e a de Ernani Ssó em extremos opostos: a primeira segue muito de perto o original, valendo-se da semelhança entre as duas línguas e trazendo o leitor até o texto, através de abundantes notas de rodapé; a segunda leva o texto até o leitor, optando por termos mais conhecidos atualmente, substituindo expressões por suas explicações e tentando resolver possíveis ambigüidades do texto de Cervantes. As outras duas ficam no meio: a de Castilho, Azevedo e Chagas mais próxima da de Molina (mas sem notas de rodapé na maioria das edições, o que é um grande ponto negativo), e a de Andrade e Amado mais próxima da de Ssó.

A tradução de Almir de Andrade e Milton Amado me deixou com a sensação de que os tradutores procuraram corrigir imperfeições do texto de Cervantes e acabaram deixando o texto um pouco quadrado, duro, sem a mesma fluência que o original.

A proposta de facilitar a leitura, adotada por Ernani Ssó, não me agrada. Eu prefiro ser levado ao texto, à época, ao local da história — mesmo que isso dê mais trabalho.

Já disse na 2ª parte desta comparação que gosto quando as traduções do espanhol acompanham o original muito de perto, o que é permitido pela semelhança dessa língua com o português. Por isso, pela fluência do texto, pela grande quantidade de notas de rodapé e pelo que mais foi visto nesta comparação, julgo que a melhor tradução de Dom Quixote é a de Sérgio Molina.


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12 comentários em “Dom Quixote, de Miguel de Cervantes – Traduções comparadas, 3ª parte

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  1. Luiz Felipe, muito obrigado por compartilhar seu cotejo e parabéns pelo trabalho!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Sou professor de Língua Portuguesa e Literatura do IFRN Campus Pau dos Ferros, aqui no Rio Grande do Norte, e decidi trabalhar este ano com Dom Quixote para dar conta de uma das pautas da disciplinas Língua Portuguesa IV, oferecida para os alunos do Ensino Médio Técnico Integrado, que é best sellers. Já tinha feito o download de algumas versões na internet para que eles (os que não queiram ou possam comprar o livro) pudessem ler. Mas depois desses posts, vou escanear a minha edição, que traz a tradução de Sérgio Molina, e compartilhar com eles. Obrigado!

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  2. Luiz Felipe, seu blog foi um achado. Há muito, vinha procurando por análises de traduções (principalmente, dos clássicos). Muito obrigado por nos oferecer textos tão esclarecedores.

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  3. Obrigado por todo o trabalho em conferir as várias edições que temos no Brasil. Mas ainda tenho uma dúvida a tradução de Nougué e Sánchez se parece com alguma das descritas?
    Ela vale a pena?
    Se alguém tiver o conhecimento sobre, agradeço muito, estou de olho na edição clássicos da Abril.

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